Conforme já havia prometido a alguns leitores, depois de conseguir a cópia da sentença que proibiu o Counter Strike e o Everquest, faço aqui algumas considerações jurídicas e pessoais acerca da decisão.

Aproveito para agradecer ao colega Dmitry do Pipoca de bits, a paciência e colaboração em conseguir uma sentença que nem mesmo o Tribunal Regional da 1ª Região havia disponibilizado.

Da Viabilidade ou não do remédio jurídico.

Muitos me perguntaram, “mas como é possível, doutora, que um JUIZ proíba a comercialização de algo?”

É possível sim. A possibilidade se fundamenta na Lei 7.347/85 que legitima o Ministério Público Federal a defender os direitos dos consumidores. Essa intervenção do Ministério Público em nome da defesa dos direitos difusos e coletivos se dá através de AÇÃO CIVIL PÚBLICA que tem eficácia “erga omnes”. O que? Calma... traduzindo: ela se aplica até mesmo a quem não foi parte do processo, daí dizerem que se trata de uma sentença com força de lei.

Assim, possibilidade existe, e ainda bem. Em vários casos, como venda de alimentos impróprios ou em casos de patente desrespeito aos consumidores, o Ministério Público pode vir à Justiça e zelar pelos interesses de todos os consumidores. A lei é boa. Não vamos apedrejá-la.

A sentença: um verdadeiro ato da “ditadura” Judiciário

A sentença baseou-se quase que integralmente em outra sentença da Juíza Federal da 3a Vara da Seçâo Judiciária de Minas Gerais ao analisar os jogos DOOM, POSTAL, MORTAL KOMBAT, REQUIEM, BLOOD e DUKE NUKEN e que teve como pedra angular o artigo 223 da CF, que preceitua

“Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,
à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão”.

Em minha modesta opinião, erra a sentença ao legislar em nome de uma minoria da sociedade. Ao proibir a comercialização dos jogos o Judiciário simplesmente feriu outro preceito constitucional que protege a liberdade dos demais brasileiros que não estão em fase de infância e adolescência.

Tanto o MP quanto a Juíza concordam que os jogos são nocivos nessa fase por se tratar de fase de formação de personalidade. E os que já tem sua personalidade formada, e estão em pleno gozo de seus direitos civis? Quem zelará por seu direito constitucional de livremente adquirir o produto?

Existem outras maneiras de coibir a venda desses jogos a adolescentes e crianças, mas creio que seja muito mais trabalhoso do que simplesmente proibir a comercialização em uma atitude completamente antidemocrática.

Uma maneira, por exemplo, de se dificultar o acesso a esse tipo de jogo, seria a classificação etária obrigatória de 18 anos, como já acontece nos casos de bebidas alcoólicas e cigarros. Disse dificultar, pois proibir o acesso será dificílimo. Existem “n” maneiras de se conseguir acesso ao conteúdo, seja pela internet seja nos camelôs lotados de material pirata.
O Ministério Público dá um verdadeiro atestado de sua incompetência ao afirmar que não conseguiu impor as medidas restritivas quanto à comercialização dos jogos. Já que o poder público não conseguiu cumprir com o seu papel então vamos pisar nos direitos constitucionais de todos aqueles que estão em pleno gozo de seus direitos civis e proibir a venda! Esse foi o resumo da ópera.

Muito se falou sobre o impacto da violência nas famílias. Em que pese o entendimento da douta Magistrada e mãe, o conteúdo que adentra os lares, seja virtual ou não, é de responsabilidade da família e o Estado, mais especificamente neste caso o Judiciário, não pode pretender suprir o seu papel. A responsabilidade pela educação dos filhos ainda é do pai e da mãe, e não do Poder Público.

A falência do Estado em cumprir suas funções básicas vem ocasionando decisões arbitrárias de órgãos que estão tentando voltar à Idade Média. Caros leitores, a lei deve ser feita pela a sociedade através de seus representantes e não CONTRA a sociedade. Estão querendo trilhar o caminho inverso, tentando adequar a sociedade às normas e não o contrário. As leis são estas aqui. A sociedade... bem.. que engula!

Lembro-me agora de um clássico do cinema, Inherit the wind (O Vento será sua herança) que fala de uma forma muito didática sobre o debate criacionismo versus evolução que ocorreu na sociedade norte-americana. Foi inspirado em um caso real onde um professor foi julgado por ensinar a teoria da evolução de Darwin em uma escola pública.

Eu sei que não tem muito a ver com o assunto, mas lembrei-me do discurso do advogado representado brilhantemente por Jack Lemmon. Ele afirma em seu discurso que se nos pusermos a proibir certas coisas trilharemos por um caminho sem volta direto ao século XVI. A liberdade ainda é o pilar mestre de uma democracia e cada decisão que afronta esse princípio não deve, ou pelo menos não deveria, ser tolerada.

As crianças e adolescentes sempre brincaram de bandido e ladrão. Não me venham com essa de que agora eles preferem ser ladrões. Nas brincadeiras de antigamente nem todos poderiam ser o "mocinho" e ninguém ficava irritado em tomar o papel do ladrão. Isso meus caros porque já foi comprovado que crianças sabem sim diferenciar realidade de fantasia.

O que está modificando a personalidade de nossas crianças não é tomar os jogos por realidade, mas sim identificar na realidade o mesmo conteúdo dos jogos. É a realidade meus amigos, a qual vemos todos os dias nos noticiários que está moldando a personalidade dos jovens.

Um trecho da sentença em questão que acho merecer destaque:

...à medida que o jogo COUNTER-STRIKE, fabricado nos Estados Unidos e adaptado no Brasil, “virtualiza’” uma cena de embate entre a Polícia do Estado de Rio de Janeiro e traficantes entrincheirados nas favelas, tendo por fundo musical um funk proibido. Na visão de especialistas, esse jogo ensina técnica de guerra, uma vez que o jogador deve ter conhecimento sobre táticas de esconderijo, como se estivesse numa guerrilha, com alternativas de terrorista e contra-terrorista, táticas de ataque e defesa. Com efeito, essas cenas, bem descritas naquelas páginas, trazem imanentes estímulos à subversão da ordem social, atentando contra o estado democrático e de direito e contra a segurança pública, impondo sua proibição e retirada do mercado.

O jogo virtualiza a REALIDADE. Basta ligar a TV nos noticiários da tarde que TODOS terão acesso a esse tipo de material: crianças sendo arrastadas em carros, balas perdidas, crianças tendo que se jogar no chão da escola para não terem suas cabeças estouradas por balas de AK47.

Hoje proibimos os jogos. Amanhã proibiremos os noticiários, e depois os jornais escritos e rádios. No final estaremos em pleno século XXI proibidos de falar sobre fatos, simplesmente porque é “feio demais”, é “violento demais”. Estamos trilhando o caminho inverso!

A violência a ser proibida deveria ser aquela que está nos morros, falando agora sobre o Rio especificamente. Essa violência que vemos todos os dias na TV sim é que deveria ser coibida exemplarmente pelo Poder Público. Se isso ocorresse, o jogo seria apenas o que é... UM JOGO. O grande problema é que se trata de um retrato da realidade, e isso é insuportável.

Lamentável a iniciativa do Ministério Público. Lamentável a decisão da Juíza que rasgou a constituição em nome de uma posição hipócrita de defesa à própria Carta Magna que rasgou. Lamentável a inércia do Poder Público em não implementar políticas de fiscalização efetiva de modo a restringir o acesso a esse tipo de jogo a crianças e adolescentes e, por fim e não menos importante, LAMENTÁVEL a inércia de nossos governantes que não conseguem resolver o problema segurança pública tornando a realidade do país em cenário de filme de guerra e jogos de vídeo game.

Espero viver para ver uma sociedade onde o único acesso à violência seja através de jogos como o Counter Strike e Everquest, porque no atual cenário eles me parecem mais como uma útil ferramenta de preparação para uma guerra civil existente, mascarada por uma falsa sensação de presença de um poder público hipócrita e ineficiente.