Juiz Fausto Martin De Sanctis

No Brasil, uma coisa é uma coisa e a mesma coisa é "outra coisa". Tudo depende de quem é o réu.

"Gilmar Mendes não errou por decidir sem convocar o plenário. Gilmar Mendes não errou por não dar ouvidos ao clamor público, nem tampouco por dar bananas à imprensa. O ministro do Supremo errou ao apreciar a matéria que não era de sua competência, pisando na autoridade dos desembargadores do TRF e dos ministros do STJ, decidindo sobre recurso que deveria ser denegado de plano. "

O Jurisconsulto não foi criado para discutir a política e as politicagens dos órgãos judiciais brasileiros. Via de regra, o intuito do blog é responder as perguntas dos internautas, comentar julgados e dar dicas aos consumidores.

Já comentei aqui diversas decisões da nossa corte Suprema e hoje lendo um post para lá de bem feito, como sempre, do amigo Arthurius Maximus do Visão Panorâmica, decidi dar minha "peruada" a repeito do caso "Daniel Dantas".

Afinal de contas, acertada ou não a decisão do Ministro do Supremo? Gilmar Mendes é realmente o Guardião da Constituição ou um pseudo deus do olimpo, onipotente e onipresente, alheio à competência dos pequenos probres juízes de primeira instância?

Peço licença aos leitores para dar minha opinião jurídica sobre o "prende e solta" do banqueiro Daniel Dantas, que vem causando tantas opiniões divergentes.

1) Breve histórico.

Nem todos os internautas estão à par dos fatos então vamos à um breve histórico. Tentarei ser o menos prolixa possível. Na terça-feira dia 08/07/2008 o Juiz Fausto Martin de Sanctis, da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo decretou a prisão temporária do banqueiro Daniel Dantas por crime contra o sistema financeiro nacional, previsto na Lei 7.492/86.

No dia 09/07 o presidente do STF, Gilmar Mendes, determinou que os advogados do banqueiro tivessem acesso aos autos e determinou a soltura de Daniel Dantas, deferindo liminar em pedido de Habeas Corpus. No mesmo dia 09/07, 11 horas depois da decisão do STF, o valente juiz De Sanctis expediu novo decreto de prisão, agora preventiva, baseado em novas provas apresentadas. Na sexta-feira, dia 11/07/2008 o ministro Gilmar Mendes NOVAMENTE mandou soltar o banqueiro, alegando falta de fundamento da prisão decretada pela primeira instância.

Diante do furor público e do destaque que a matéria teve na mídia, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que o clamor da população não pode ser determinante para uma sentença de direito. "Se o juiz, seja ele de que grau for, tiver que decidir atendendo ao clamor público, teremos não a aplicação do direito com seus princípios, mas um linchamento", afirmou o Ministro em declaração pública.

Vários advogados, magistrados, ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) demonstraram públicamente o seu apoio ao Juiz De Sanctis, em defesa de sua decisão ao determinar a prisão preventiva do banqueiro com base nas provas apresentadas pela Polícia Federal (confira no final da postagem a íntegra do Relatório da Operação Santiagraha).

2) Instâncias e rococós


É complicado explicar instâncias e entrâncias jurídicas sem o famoso juridiquês nosso de cada dia. Tentarei traduzir na medida do possível, mas já adianto ao leitor que poderei não ser bem sucedida nisso.

A Constituição Federal garante ao réu o direito de ser julgado por juiz competente. Nosso judiciário é galgado em instâncias, que são basicamente graus jurisdicionais. Na base da pirâmide temos um juiz de primeira instância, ou seja, aquele juiz do fórum que decide todas as questões sobre família, execuções, cautelares, etc.

Quando uma decisão desse juiz de primeiro grau não satisfaz alguém, esse alguém terá o direito de interpor o RECURSO. O recurso é o direito do insatisfeito ter o sua pretensão apreciada por um desembargador do Tribunal de Justiça, que tem o poder de reformar aquela sentença. É o segundo degrau da pirâmide. O duplo grau de jurisdição, como dizemos no juridiquês, é a garantia de termos a "segunda opinião" no judiciário. Todo homem erra. O juiz é um homem (ou mulher). Portanto o juiz pode errar. Silogismo básico e neste silogismo se baseia o duplo grau de jurisdição.

Essas são as instâncias ordinárias: o juiz de primeiro grau e o Tribunal de Justiça. Temos ainda as instâncias extraordinárias, que são os Tribunais Superiores, dentre eles o STJ e o STF. Esses órgãos colegiados tem competências bem definidas nos artigos 102 e 103 da Constituição Federal, o que quer dizer que somente alguns processos poderão ser interpostos ou revistos pelos seus ministros.

Via de regra o STF somente poderá decidir acerca de um Habeas Corpus, quando houver uma decisão do STJ a respeito, de outro Tribunal Superior qualquer ou quando o coator ou paciente for autoridade sujeita à jurisdição do STF.

A ordem no caso seria:
1) Decisão do juiz de primeiro grau determinando prisão,
2) Habeas Corpus para o TRF 3ª Região contra autoridade coatora de primeira instância
3) Habeas Corpus para o STJ contra autoridade coatora do TRF (desembargador)
4) Habeas Corpus para o STF

Essa seria a ordem se eu, ou qualquer outro advogado de um cliente "normal" tivesse passado pelo mesmo problema e apresentado recurso. Isso acontece todos os dias em qualquer escritório de advocacia criminal.

3) Como dizia palhaço carequinha: tá certo, ou não tá???

Em que pese a manifestação do Ministro Gilmar e dos advogados do banqueiro Daniel Dantas, houve sim a supressão de instância, ou em outras palavras, "pularam um degrau" o que é INCONSTITUCIONAL. Vários recursos são denegados diariamente pelo STF sob o mesmo fundamento: SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA, mas este curiosamente não foi.

Eu já tive alguns HCs indeferidos sob este fundamento. Como não havia apresentado recurso ante as instâncias inferiores, o STJ e STF sequer receberam meus pedidos. Apesar de já ter apresentado Habeas Corpus em instâncias inferiores, os meus recursos não foram recebidos porque foram feitos com base em argumentação diversa. Assim, não basta apenas que haja decisão de instância inferior, mas sim que essa decisão tenha versado exatamente sobre aquela determinada matéria.

Exemplo? Eu ingresso com HC ante o TJRJ alegando prescrição ou falta de justa causa para prisão do meu cliente. A ordem não é concedida. Neste meio tempo o meu cliente fica mais tempo preso do que o permitido para a investigação. Eu então dou uma de "espertinha" e entro com pedido de HC diretamente no STJ (pulo o TJRJ). Certamente o STJ vai denegar o meu HC por supressão de instância, uma vez que esse fato novo (excesso de prazo) ainda não havia sido avaliado pelo TJRJ.

No caso de Dantas, já haviam 3 Habeas Corpus impetrados por diferentes razões. O STJ já havia indeferido pedido liminar de Habeas Corpus duas vezes e havia um pedido pendente no STF. Os argumentos utilizados pelo juiz De Sanctis para decretar a prisão temporária de Dantas não estavam em nenhum dos recursos interpostos pelos advogados do banqueiro. Em outras palavras, as razões que originaram a prisão temporária não foram apreciadas pelas instâncias inferiores, como deveriam ser.

Um habeas corpus contra a prisão temporária ocorrida em 09/07 somente poderia ser apresentado perante o TRF, para depois seguir para o STJ e finalmente para o STF. O segundo HC foi mais absurdo ainda. Havia uma segunda prisão, desta vez preventiva, com base em outros fundamentos não avaliados pelo TRF e STF. O STF simplesmente avocou a decisão, pisou em todas as demais instâncias e praticamente proibiu que qualquer prisão seja decretada nesse processo.

A pergunta que fica é, por que o caso do banqueiro é diferente dos outros tantos casos que passam pelo STF? Por que o douto Ministro não aplicou a mesma decisão que é dada para os reles mortais que tem contra si uma preventiva decretada - a de não suplantar as instâncias inferiores obrigatórias?

Por que o Ministro Gilmar Mendes simplesmente PULOU o TRF e o STJ como se fossem instâncias supérfulas cuja decisões não eram necessárias?? Daniel Dantas não tem foro privilegiado e mesmo assim foi tratado pelo STF como se tivesse.

O Ministro Gilmar Mendes afirmou que o Judiciário não pode ser emparedado pelo clamor público, mas quando existe um réu "famoso" sob os holofotes da mídia o STF decide de maneira diferente dos demais casos que já apreciou. Onde está a imparcialialidade, princípio básico da atividade jurisdicional?

Gilmar Mendes não errou por decidir sem convocar o plenário. Gilmar Mendes não errou por não dar ouvidos ao clamor público, nem tampouco por dar bananas à imprensa. O ministro do Supremo errou ao apreciar a matéria que não era de sua competência, pisando na autoridade dos desembargadores do TRF e dos ministros do STJ, decidindo sobre recurso que deveria ser denegado de plano.

O caso vai acabar, mais uma vez em pizza. E saiba leitor, que o molho é do senhor doutor Ministro Presidente do STF, Senhor Gilmar Mendes!

Minha solidariedade aos juízes do TRF e em especial do De Sanctis que teve sua autoridade pisoteada e enlameada. Minha soliedariedade à sociedade brasileira que mais uma vez viu uma pessoa com tantas provas contra si ser solta e perder um pouco mais da sua fé - já inexistente - no judiciário brasileiro. Minha solidariedade aos presos que tiveram seus Habeas Corpus denegados pelo STJ e STF sob fundamento de supressão de instância, simplesmente por não terem o cacife do nosso colega Daniel Dantas.


E por fim, minha solidariedade à Constituição Federal, que foi assassinada pelo órgão que deveria zelar pela sua manutenção e aplicação.

LINKS DA MATÉRIA
Relatório da PF sobre Dantas: parte 1, parte 2, parte3, parte 4
Consulta processual do TRF SP - número do processo 200661810086478, Fórum Capital Criminal
Matéria no Visão Panorâmica - Telefones, Juízes corruptos e as dificuldades

ATENÇÃO: o relatório da Polícia Federal (Operação Santiagraha) está em PDF portanto o Acrobat Reader ou Fox Reader serão necessário para visualização do documento.