Consumidor ou estelionatário?

"Devo e não nego, pago quando puder..."

Há muito bato na tecla da insistente mania dos juízes e Tribunais em não aplicar os dispositivos existentes na legislação brasileira. Tais dispositivos poderiam coibir certas práticas já tidas como inerentes da 'cultura brasileira'. Um dos exemplos é a litigância de má-fé e o artigo 18 do Código de Processo Civil, pouco aplicada e reconhecida pelos juízes.


Agora, mais uma vez outro dispositivo - agora constitucional - que oficialmente cai por terra. Quais os dois tipos de prisão civil existentes no Brasil? Tenho certeza que você responderia, mesmo sem qualquer formação em direito: a do pai que não paga a pensão alimentícia e a do depositário infiel.

A prisão do pai inadimplente ainda está de pé, mas com as recorrentes decisões do STF a respeito, a prisão do depositário infiel está oficialmente sepultada. Isso quer dizer que se você teve algo penhorado em um processo de execução e resolve vender antes do término do processo não será mais preso por isso. Ainda, você que realizou um financiamento para compra de um veículo, não poderá mais ser preso em uma ação de depósito caso dê um "sumiço" no veículo.

E viva a inadimplência!!!

Não me leve a mal, leitor. Não sou defensora de bancos e de suas práticas abusivas. Mas cá entre nós, com o advento do CDC muitos estelionatários estão se disfarçando de consumidores para exigir "direitos" que nunca tiveram.

Há algumas semanas um cliente em potencial, interessado nos serviços de petição online que presto para advogados através de meu outro blog, Vademecum Jurídico, entrou em contato pelo telefone. O que ele queria? Tirar o nome do SPC/SERASA, é claro. Seu argumento jurídico? Como ele poderia pagar o débito que tinha se não poderia ter crédito na praça devido ao seu nome constar na lista negra?

Para esse "cliente", muito convenientemente, a permanência do seu nome na SERASA era um constrangimento que feria de morte o artigo 5º da Constituição e o Código de Defesa do Consumidor, a despeito de realmente ele ter pego um empréstimo no banco e não ter honrado com a dívida. É o famoso devo, não nego e pago quando puder. E se não puder... paciência.

Foi complicado explicar a ele que crédito significa "confiança" e não direito líquido e certo. Ninguém tem direito líquido e certo a ter crédito e nenhuma instituição financeira é obrigada a dar dinheiro a alguém, a não ser que essa pessoa a convença que tem condições/intenções de arcar com seus compromissos - através de comprovantes de renda, endereço e telefone fixos, boas recomendações, e, nome limpo no SPC/SERASA.

O que fica evidente é que existe muito espertalhão se vestindo de consumidor e bradando o artigo 5º da CF e os artigos do Código do Consumidor aos quatro ventos, e decisões como a do HC 97.251 do STF apenas vem piorar esse quadro. No caso em tela, o Ministro Gilmar Mendes concedeu o relaxamento da ordem de prisão contra Renato Duprat Filho, que havia sido acusado de ser depositário infiel.

No caso em tela, o Senhor Renato é reu em uma execução fiscal onde haviam sido penhorados 71.833 quilates de pedras preciosas, sendo ele nomeado como depositário, como acontece em qualquer processo de execução. Em razão da natureza dos bens objeto de penhora, houve determinação de apresentação para avaliação na Caixa Econômica Federal, que não foi realizada pois as pedras haviam sido vendidas. Em primeiro e segundo graus e no STJ a decisão que determinou expedição de mandado de prisão foi confirmada. No STF ela caiu. O réu no caso deve, não pagou, vendeu o que estava penhorado e... e nada. Fica por isso mesmo.

Se você é um devedor pode estar lendo o texto com uma certa relutância, mas eu gostaria que você se colocasse do outro lado da novelinha. Processos de execução hoje são procedimentos em extinção nos escritórios de advocacia. O cliente pensa milhões de vezes antes de ingressar com uma execução de cheques, por exemplo: primeiro porque tem que pagar a maldita taxa judiciária, diligências do meirinho etc, e segundo porque o processo demora tanto que não vale a pena.

Agora, se você é um feliz dono de um cheque devolvido por falta de fundos, tem um motivo a mais para "perdoar" o seu devedor, usar o cheque para outra "finalidade" qualquer e desistir de colocar o título "no pau". Mesmo que o devedor tenha um carro e este venha a ser penhorado para pagar o borrachudo que ele te passou, lembre-se que o processo é demorado devido a burocracia e a lentidão da Justiça Brasileira. Nesse meio tempo, o "pobre" devedor poderá VENDER o carro penhorado - último bem que ele ainda tinha - e sequer irá para o xilindró por ser depositário infiel. Você? Toma uma cerveja e aproveita para usar o cheque como descanso de copo, amigo.

Ah, e não se esqueça de fazer um brinde ao STF e aos seus "doutos" ministros.


PS. Já prevendo os comentários sobre direito constitucional que certamente serão feitos pelos incansáveis acadêmidos de direito que visitam o blog, aviso que já estou ciente de toda a "lenga lenga" da força que tem um pacto internacional homologado pelo legislativo brasileiro. Sei que tem força de emenda constitucional. Sei que teoricamente não poderia alcançar o artigo 5º e seus incisos, onde está prevista a prisão para o depositário infiel, por serem cláusulas pétreas. Sei também que conforme posição do STF a cláusula pétrea pode ser emendada desde que para acrescer direitos, portanto para todos os efeitos o Pacto de San Jose legitima a proibição da prisão do depositário.

Contudo, a despeito dos conhecimentos sobre a hermeneutica jurídica constitucional, teimo em considerar esse tipo de decisão temerária e inconsequente. O que vejo é uma tendência em proteger o inadimplente, criando uma verdadeira cultura de mau pagadores. Não me surpreenderia mais se o Brasil assinasse um acordo internacional condenando também a prisão do pai devedor de alimentos e a única arma que as mães têm para garantir a eficácia da execução de alimentos, caisse também por terra.